Por Clara Days:
Ideias-chave: entre pulsão e moderação; equilíbrio e instinto; transgrido, mas pondero.
Vem o Diabo tirar-nos do sossego, empurrando-nos para fazermos o que nos apetece. Vem o Diabo, mas a Temperança também, permitindo-nos contrapesar, moderar e fundir o que parece contraditório. Como gerir estas influências simultâneas?
Retire-se ao Diabo uma conotação maléfica, ele não a merece. Libertário, independente, segue a força do instinto e não teme consequências. Mas, na realidade, não prejudica os outros, é de si para consigo, apenas. Atribuem-lhe características pecaminosas aqueles para quem as conveniências devem imperar, os moralistas. Sim, o Diabo pode arrastar-nos para alguns abismos, quando as pulsões que sentimos nos levam para caminhos de dependência – mas chamar a isso maldade é demasiado simplista. Com o Diabo arriscamos uma verdade profunda, somos profundamente verdadeiros. A sua força vem-nos de dentro, das entranhas, da nossa intimidade mais inconfessável, irracional e poderosa.
Já a Temperança, ou Arte, rege-se por outros padrões, muito mais mentais. Ela “dissolve e combina”, como na Alquimia, separando e juntando o possível e o impossível, o arriscado e o sensato, o fácil e o difícil. Une o que parece contraditório e consegue daí tirar soluções diferentes – de duas coisas que junta, cria uma nova. Representa o Princípio da Integração dos Opostos, unidos e complementados. Contudo, convém lembrar que, na acepção mais conservadora das qualidades da Temperança, esta caracteriza o domínio das paixões, o “temperar” dos instintos – ela moderaria, atenuaria os “excessos”.
Ora, o Diabo é, por natureza, moralmente excessivo. Leva tudo por inteiro, vai até ao fundo, até ao fim. Como compatibilizar estas duas energias, que hoje nos surgem juntas?
Lembremos então que estes são dois Arcanos consecutivos na numeração, o 14 e o 15, sendo que, curiosamente, primeiro vem a Temperança e só depois o Diabo. Se considerarmos a sequência dos 21 Arcanos Maiores numerados como a Jornada do Louco peregrino, em viagem de crescimento e aprendizagem, na tomada de consciência, partindo do individual e até ao universal, que sentido dar a esta sucessão concreta?
Primeiro, o acalmar das emoções, o regular dos fluxos que a Arte da Temperança permite fazer. Com ela se encerra o segundo septenário dos Arcanos Maiores, definido por Jung como “o Reino da Consciência do ego e da realidade terrestre”. O Diabo, por sua vez, inaugura o terceiro septenário, designado pelo mesmo autor como “o Reino da Iluminação e da Auto-realização”, onde resgatamos a nossa própria luz para entrar em contacto com as forças universais. O Diabo representa aqui, segundo os mais conservadores, a escura prisão do materialismo primário, dos instintos menores, rodeados de tabus; mas, para mim, este resgate dos instintos é a libertação do ser mais espontâneo que trazemos em nós, que outros podem ter querido recalcar e suprimir. Os nossos instintos guardam a nossa energia vital, que é a verdadeira força motriz da nossa acção.
Como ficamos, então? Entre dois mundos, diria eu. Por um lado, convidados a unir o que se opõe, ao exercício máximo da diplomacia; por outro, impulsionados para libertar a nossa essência e assumir a nossa verdade íntima sem tabus nem receios.
Que cada um se situe nesta equação. Uma boa semana para todos.
Imagem : Pre-Raphaelite Tarot, de Luigi Costa e Lo Scarabeo, 2019

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