Por Clara Days:
Palavras-chave: pertença; ideologia; conformidade; transcendência
Eu pertenço – ou pertenci? Tu pertences, todos pertencemos, ou já aí estivemos, ainda que o nosso caminho nos tenha levado para outro lado. Sem pertença, eu não seria gente.
É preciso uma aldeia para criar uma criança… O crescimento é balizado por limites e exemplos, cumpro as regras para me sentir seguro e só depois as saberei, livremente, desrespeitar. O Hierofante é, antes de tudo, isso: uma teia de regras e limites, de tradição e crença, que é a rede do trapézio onde nos fazemos gente, até podermos, adultos e seguros – e se quisermos… – viver sem rede.
Vejamos: sou eu porque me comparo aos outros, ou porque me conformo ou me diferencio. Posso vir a aceitar, ou não, a protecção do colectivo, embora saiba que, se tivesse sido criado por lobos, lobo era, no comportamento, na comunicação. A pertença fez-me humano, só depois a liberdade me deixou poder escolher. O Hierofante é também escolha, quando é caminho pessoal, de uma espiritualidade filosófica, do âmbito do pensamento consciente e estruturado.
Há, então, os dois extremos. O primeiro, feito de reconhecer nele, Hierofante, a autoridade superior que me guia, orienta e impõe limites. Vem justificada “de cima”, a partir da regra, e será sempre do foro espiritual, na medida em que será sempre uma construção da inteligência, perante o comum e até ao universal. Aqui, o pressuposto é que a transcendência veio antes de mim (e dos outros) e ficará, depois de mim (e dos outros).
Há o outro extremo, onde me referencio à minha exclusiva escolha e assumo ser a minha própria autoridade, ainda que me ancore em certezas pontuais. Isto pressupõe e obriga a aprofundar as convicções e a desenhar do nada a pauta onde escrevo a justificação e a justiça do meu percurso ideológico. Aqui, a transcendência tem de nascer a partir de mim, quando me afasto porque conheço, questiono, escolho e me desvio por um outro caminho.
Nenhuma decisão é coisa pouca, quando o Arcano Maior 5 preside. Nada se passa no terreno do comezinho. O Hierofante presume sempre um Conhecimento, onde a transgressão pode elevar-se e passar a Transcendência.
Hierofante, termo escolhido a partir da designação do grande sacerdote que presidia ao culto de Elêusis, na antiga Grécia. Hierophantes (em grego antigo εροφάντης), “aquele que explica as coisas sagradas”. O substituto dum Papa católico que, nas origens do Tarot, era sobretudo um símbolo do maior poder, numa Europa Ocidental ainda de obscurantismo, que tinha perdido a cultura clássica e os seus filósofos. Representado como sumo-sacerdote, usa a referenciação à religião para se situar no terreno do que é espiritual. Parecendo o par natural da Sacerdotisa, não o é, verdadeiramente, porque ela opera dentro de cada um, íntima e intuitiva, enquanto que o Hierofante é público, assumido, exposto ao questionamento e à dúvida.
Nos diferentes baralhos, pode chamar-se “Papa”, “Sumo-Sacerdote”, “Vigário”, “Antepassado”, “Tradição”, “Vazio” ou “Revelação”. Pode ser associado a Juno, a mulher de Júpiter no panteão romano, a Taliesin, bardo do imaginário britânico primitivo, ou Dagda, da tradição ancestral irlandesa; pode ser o centauro Quíron, da mitologia grega, ou mesmo uma árvore sagrada do paganismo. Nas imagens, está vestido de acordo com a sua condição de oficiante, seja qual for o seu credo. Está frequentemente acompanhado por um livro sagrado ou uma chave (dos segredos, do conhecimento). Recentemente, variam as metáforas simbólicas, relacionadas com algum ritual ou inspiração espiritual.
Cinco são os dedos da mão e o seu número 5 pode simbolizar liberdade e curiosidade, ou autoridade e benevolência. A letra hebraica que lhe corresponde é VAV, o gancho que conecta os pilares da criação. Título esotérico deste Arcano Maior: “O Mestre Triunfante”.
Astrologicamente, o Hierofante associa-se a Touro, signo fixo de Terra, regido por Vénus, onde o vigor do que é concreto e fecundo se afirma. Touro é persistente, concreto, amável e estável, mas também teimoso e possessivo.
Para mim, parece um paradoxo: como se associa um representante do Princípio da Transcendência ao mais terreno dos signos? A minha tendência para espiritualizar o significado do Arcano 5 esbarra sempre com este paralelismo, que o liga à terra como uma raiz profunda, tudo ao contrário do que costumo querer interpretar. Touro estará certo para o Papa, no sentido tradicional, mas não tanto para um Hierofante feito à luz do olhar contemporâneo. Ou, então, esta referenciação pretende dessacralizar o significado da sua transcendência, ligando-a mais ao concreto das atitudes e comportamentos. Aí, o Hierofante é Touro porque exige que algo de concreto aconteça, como consequência da ideologia. Será?
Seja como for, ele vai acompanhar-nos esta semana, inspirando o questionamento das raízes profundas das decisões que tomarmos, entre nós e o colectivo.
Poderemos acomodar-nos, e assim nos ajeitarmos ao Hierofante conformista que aceita e segue a orientação da regra como o tributo devido ao seu grupo de pertença. Nesta opção, alinharemos como soldados de uma trincheira ideológica, protegidos pelo que nos guia e e fortalecidos pelos nossos pares. Mas podemos escolher o Hierofante autónomo e individualista, que precisa de ir ao fundo, de procurar as certezas para explicar os porquês, de justificar até à raiz as suas opções.
Na realidade, pensando bem, até podemos optar por um destes dois caminhos, mas podem ser as circunstâncias que vivemos a escolher por nós.
Seja como for, nesta semana que começa, será entre cada um e o colectivo, para alinhar ou divergir. Será público e convocará as ideias, ou, melhor, os ideais. Os passos que se derem deverão ter um sentido mais profundo. As decisões exigirão justificações reflectidas e coerentes.
Nesta semana, no que de importante se passar entre nós e os outros, as coisas precisarão de ter um sentido que vai mais fundo, para poderem ir mais longe.
Imagem : Fountain Tarot, de Jason Gruhl, Jonathan Saiz e Andi Todaro, 2017
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